GIOVANNA LONGO
As manifestações do esquema lingüístico do latim, isto é, seu uso, como língua materna, por falantes legítimos, chegaram até nós por meio de registros escritos. Essa é uma importante questão que se impõe ao ensino e que deve ser atentamente considerada.
Os sistemas de escrita, como meio desenvolvido para representar a fala, surgem pela necessidade de registro permanente da expressão. Entretanto, não se pode deixar de ressaltar que esses sistemas, além de serem estranhos ao sistema lingüístico, não são capazes de representá-lo de modo satisfatório. Realmente, os signos da escrita não são uma imagem gráfica muito adequada dos sons da língua.
Porém, pelo grande prestígio que a escrita tem nas sociedades humanas ditas “civilizadas”, o papel da escola foi, muitas vezes, o de inverter a ordem dos fatos:
quanto menos a escritura representa o que deve representar, tanto mais se reforça a tendência de tomá-la por base; os gramáticos se obstinam em chamar a atenção para a forma escrita. [...] O emprego que se costuma fazer das palavras “pronunciar” e “pronúncia” constitui uma consagração desse abuso e inverte a relação legítima e real existente entre a escrita e a língua. Quando se diz que cumpre pronunciar uma letra desta ou daquela maneira, toma-se a imagem por modelo. (Saussure, 2003, p.40)
Essa prática, muitas vezes, acarreta a distorção da imagem que o falante constrói da língua, uma vez que é levado a ver no signo gráfico a regra para os fatos lingüísticos.
Os desacordos existentes entre a representação gráfica e a fala oral, no caso de uma língua sem falantes naturais vivos como o latim, impõem lacunas irreparáveis ao seu aprendizado. A quantidade das vogais latinas era um traço distintivo, portanto, um dado formal, tal como para falantes de português o é a distinção entre vogais abertas e fechadas, por exemplo. Jamais um falante moderno saberá pronunciar as vogais longas e breves do latim de modo a percebê-las como fonemas, isto é, como sons cuja distinção seja associada à diferenciação de significados, tal como ocorria naturalmente para um romano.
Em um verso como o que segue, tomado da Eneida, de Virgílio, destaca-se uma forma verbal com a qual se pode ilustrar essa questão:
Italiam fato profugus Lauiniaque uenit (I, 2)
Como quer que o verso seja lido, um falante moderno não será capaz de distinguir se esse uenit (uenire, vir, chegar) é a forma do presente, cuja primeira sílaba é breve (uĕnit), ou a do perfeito, em que a primeira sílaba é longa (uēnit). Nesses casos, a leitura moderna do latim só permite que se reconheçam as mesmas letras, ou grafemas, para a representação de sons que eram, para o ouvido de um romano, claramente distintivos.
À atualidade restou como último recurso para o entendimento da prosódia latina os dados de métrica fornecidos pela escola. É somente por meio de práticas metalingüísticas que é possível reconhecer a distinção longa/breve. Assim, para que um estudante moderno saiba que o verbo uenit, naquela passagem de Virgílio, está no perfeito do indicativo, é necessário um conhecimento teórico que lhe permita escandir o verso:
Ītălĭ|ām || fā|tō prŏfŭ|gūs || Lā|uīniăquĕ| uēnĭt
E toda a carga significativa da prosódia latina fica, assim, reduzida a uns poucos dados escolares que, por terem um fim em si mesmos, ficam sujeitos a serem tomados mais como elementos de pura erudição do que como parte de uma teoria, se esta for entendida como “conjunto de preceitos que servem de guia à prática”. As lições de prosódia, fundamentais na prática de qualquer língua estrangeira, no latim, não vão além do que uma descrição metalingüística pode proporcionar. A esse respeito vale destacar aqui a seguinte afirmação de Lima:
Uma coisa é, de fato, emitir as palavras de um texto, articulando-as segundo a pronúncia que a honesta mas fragmentária lição dos bons filólogos propõe, outra seria enunciar esse texto em voz alta, de modo a fazê-lo chegar em sua integridade linguageira aos ouvidos dos falantes nativos da língua de que é uma realização. E não há certeza sobre qual seria a reação de um romano antigo, ao ouvir Virgílio por qualquer das performances modernas de dicção. [...] É, pois, muito salutar e até democrático deixar claro que a pronúncia e a prosódia com que nossas melhores intenções busquem satisfazer às necessidades inarredáveis do ensino são, quando muito, aproximativas e, em certos pontos essenciais, puramente substitutivas. (2000, p.35)
As condições em que cada uma das modalidades de expressão se manifesta são muito diferentes. O discurso escrito configura-se sob certos rigores aos quais o oral não é submetido. Como o próprio Saussure afirmou em seu Curso, a língua literária, que pode ser entendida não somente como a língua da literatura, mas também como “toda espécie de língua culta, oficial ou não, ao serviço da comunidade inteira” (2003, p.226), está submetida a outras condições de existência (2003, p. 163).
As manifestações escritas são o registro de um uso resultante de escolhas estilisticamente conscientes que falantes fizeram dentre as possibilidades combinatórias do esquema lingüístico. É a consciência do uso que determina um maior rigor à expressão escrita – rigor próprio das coisas feitas para permanecer.
A falta do discurso oral implica a impossibilidade de se reconhecer, dentre os testemunhos da fala latina que restaram, o latim coloquial, aquele que o falante, qualquer que fosse seu nível de instrução, usava na conversação do dia-a-dia. Essa manifestação, desprovida dos artifícios estilísticos próprios dos textos literários, não está à disposição do aprendizado dessa língua antiga, como ocorre com os idiomas modernos. Assim, no que diz respeito ao latim, não se podem trabalhar três das quatro competências envolvidas no estudo de qualquer língua moderna: a produção oral, a escrita e a recepção oral.
A circunstância de que se há de partir dos textos consagrados da literatura romana revela-se um dos principais entraves impostos ao ensino inicial do idioma. Mas é importante não deixar de considerar um fato, tanto mais irrefutável quanto fundado na premissa saussuriana de que a língua é uma forma, não uma substância: a existência de escritores capazes de explorar os recursos expressivos da linguagem verbal em seu mais alto grau, tanto em Roma como em qualquer outro lugar, pressupõe a natural existência de cada uma das variantes lingüísticas decorrentes da língua, sem a qual não haveria como se estabelecer uma população heterogênea, com suas tradições, crenças, hábitos e costumes, assim como destaca a seguinte afirmação:
Quem, dentre nós, imagina uma criança, um camponês, uma mulher do povo de fala latina, exprimindo-se naquele latim ciceroniano das nossas aulas? O que é sensato pensar é que, se esse latim, o de César, de Cícero ou de Tito Lívio existe é porque existiram também variáveis populares que exprimissem sobretudo a presença de um povo – com todas as diferenças lingüísticas de região, de classe social, de idade, e demais que se possam imaginar – constituindo a comunidade no seio da qual somente cada escritor pôde existir e se formar como falante de excepcional competência. Ou seríamos tão ingênuos a ponto de pensar que, em Roma, as pessoas comuns falavam como Cícero escrevia? Ou, ainda, que simplesmente se falasse como se escrevia? (Lima e Thamos, 2005, p.129).
Assim, dentre as diversas formas de expressão da cultura romana, o que restou como representação da língua latina está registrado nos textos deixados por aquela parcela da população que dominava a escrita. Esses registros são, portanto, a única via de acesso para aqueles que se ocupam de questões sobre a linguagem verbal e têm como interesse o estudo dessa cultura antiga.
Referências Bibliográficas
Lima, Alceu Dias e Thamos, Márcio. Verso é pra cantar: e agora Virgílio? Alfa, São Paulo: UNESP, 2005, v. 49 (2), p. 125-132.
Lima, Alceu Dias. A crise da tradição humanista e o ensino do latim. In: _______ et al. Latim: da fala à língua. Araraquara: UNESP, 1992. p. 25-28.
Lima, Alceu Dias. Ensino das Letras: (des)encontros do 3o. grau. In:________ et al. Latim: da fala à língua. Araraquara: UNESP, 1992. p. 11-16.
Lima, Alceu Dias. Memorial - Concurso para obtenção de cargo de Professor Titular. Departamento de Lingüística, Faculdade de Ciências e Letras - UNESP, Araraquara, [2000].
Lima, Alceu Dias. Uma estranha língua?: questões de linguagem e de método. São Paulo: UNESP, 1995.
Saussure, Ferdinand. Curso de Lingüística Geral. 25a ed. Trad. Antônio Chelini, José Paulo Paes e Izidoro Blikstein. São Paulo: Cultrix, 2003.
Virgile. Éneide. 8e éd. Texte établi par Henri Goelzer et traduit par André Bellessort. Paris: Les Belles Lettres, 1956.
QUESTÕES
- De acordo com o texto, qual implicação decorre do fato de haver desacordos entre a representação gráfica e a fala oral, no caso de uma língua sem falantes naturais vivos como o latim? Cite pelo menos um exemplo dessa implicação.
Os desacordos existentes entre a representação gráfica e a fala oral, no caso de uma língua sem falantes naturais vivos como o Latim, impõem-se lacunas irreparáveis ao seu aprendizado. A quantidade das vogais latinas era um traço distintivo, portanto, um dado formal, tal como para falantes de português é a distinção entre vogais abertas e fechadas, por exemplo. Jamais um falante moderno saberá prnunciar as vogais longas e breves do latim de modo a percebê-las como fonemas, isto é, como sons cuja a distinção seja associada à diferenciação de significados, tal como ocorri naturalmente para um romano.
- A falta do discurso oral no latim implica que tipo de impossibilidade?
A falta do discurso oral implica a impossibilidade de se reconhecer, dentre os testemunhos da fala latina que restaram, o latim coloquial, aquele que o falante, qualquer que fosse o seu nível de instruç4ao, usava na conversação do dia-a-dia. Essa manifestação era desprovida dos artificios estilisticos próprios dos textos literários, não está á disposição do aprendizado dessa língua antiga, como ocorre com os idiomas modernos.
- Conforme o texto, quais competências que não se podem trabalhar no estudo do latim, em relação a uma língua moderna?
No latim não se podem trabalhar três das quatro competências envolvidas no estudo de qualquer língua moderna: a produção oral, a escrita e a recpção oral.